No final de 2020 foi lançado o documentário Os Mutirões da Leste 1, que traz a história do Movimento Sem Terra Leste 1 a partir de cada um de seus projetos. O documentário foi produzido e dirigido por Paula Constante, que se apresenta como “mãe, documentarista de atuação, arquiteta e mestre pela FAUUSP.” Ao contar a história de um dos movimentos sociais mais ativos da cidade de São Paulo, Paula e o MST Leste 1 nos mostram a importância da luta, do coletivo, da afetividade, e da responsabilidade que precisamos ter com a nossa atuação. Tivemos a oportunidade de conversar com Paula e discutir sobre essa experiência.
A história da Leste 1 precisa circular e estar entre todes nós. Essa compreensão histórica nos permite ter um pensamento mais crítico na hora de atuar profissionalmente, e isso é o que faz com que a romantização se transforme numa atuação mais coerente e, assim, potente. - Paula Constante
Com mais de 30 anos de história, o Movimento Sem Terra Leste 1 foi ator fundamental para importantes projetos de habitação de interesse social na zona leste da capital paulista, como o Mutirão União da Juta e o Mutirão Paulo Freire, ambos da Usina CTAH, e outros mais recentes que estão em fase de conclusão, como o Florestan Fernandes e José Maria Amaral da Ambiente Arquitetura. A luta do movimento se apoia no direito constitucional de habitação digna para todos os cidadãos e cidadãs brasileiras, e atua buscando políticas públicas e financiamento para construir moradias, pautando a autogestão como importante ferramenta nessa luta.
Em 2014 o movimento convidou Paula Constante para registrar essa história em um documentário. Paula é arquiteta de formação e trabalha na produtora Fera Filmes, onde produziu curtas para a União Nacional por Moradia Popular (2017), dirigiu também Capacetes Coloridos (2007) que rendeu participações em festivais, debates e inúmeras exibições no Brasil e na América Latina. Assumindo todas as camadas técnicas desse trabalho, desde a pesquisa histórica, a produção e a captação de verba, após 6 anos de um processo bastante intuitivo e investigativo, Mutirões da Leste 1 é lançado para nos fazer refletir não só sobre nossa atual situação política, econômica e social, mas também sobre como nós, arquitetos e urbanistas, nos inserimos nela.
Giovana Martino (ArchDaily): Decidir contar a história de movimentos sociais é um grande desafio, considerando todas as linhas argumentativas possíveis para se fazer isso. Você escolhe contar cronologicamente, trazendo figuras de todos os mutirões desde o início, na década de 1980. Essa já era a abordagem desde o início? Como foi esse processo?
Paula Constante: Fui convidada, na verdade. Me chamaram por conta do primeiro documentário que fiz, Capacetes Coloridos (2007, 38 min). O pedido inicial era de um doc de 20 minutos para contar os 30 anos de história do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra da Leste 1. Uma história que não estava inteiramente documentada em lugar algum, a não ser em fotografias (impressas e digitais distribuídas em perfis de redes sociais), recortes de jornal ou trabalhos de escola ou faculdade, mas que sempre narravam histórias específicas, de um conjunto de mutirões vizinhos ou de uma ocupação importante. A história como um todo, do nascimento aos dias atuais do movimento, estava clara para apenas uma pessoa: Evaniza Rodrigues (trabalhadora social e uma das lideranças do MST Leste 1). Eles criaram uma comissão especial para o início desse trabalho em 2015 e fizemos algumas reuniões, vivências e duas oficinas para localizar no tempo e na cidade todos os mutirões conquistados pelo Movimento. Mas o profundo da história estava mesmo na oralidade. Elencamos mais de 100 pessoas, em sua grande maioria mulheres, para ouvir seus relatos, suas impressões, seus caminhos ao longo dessa trajetória. Foi um imenso desafio organizar essa história tão extensa, não só em tempo, mas em camadas de cenários e personagens. A pesquisa se deu através das próprias entrevistas. Não tínhamos pernas para levantar todo o acervo e elaborar previamente um roteiro.
Segui um caminho parecido com o de Capacetes, de sugerir uma lista de perguntas que eram previamente apresentadas para cada entrevistade, para que se sentissem o mais confortável possível em frente à câmera, sem surpresas ou intervenções diretas em sua intencionalidade. Levei cerca de dois anos para compreender com maior clareza a história como um todo. E entendi que precisaria apresentar ao menos cinco camadas narrativas: 1) uma contextualização histórica que precisaria avançar para o passado até chegar à década de 80, quando o movimento nasce (em 1987) e seguir essa contextualização acompanhando as próximas camadas; 2) a contextualização geográfica da zona leste da cidade de São Paulo (absolutamente fundamental para compreensão do Movimento, a começar pelo seu nome: Leste 1); 3) a cronologia das gestões políticas nas três esferas (municipal, estadual e federal), já que o poder público é o principal interlocutor nas lutas do Movimento; 4) a história mais aprofundada do movimento como um todo, trazendo à tona suas descobertas, suas metodologias, seus percursos, suas ocupações, conquistas, mutirões, e sua capacidade de criar e redirecionar políticas públicas para a população; e 5) todas as personagens que ali surgiram e se reconheceram como atores politiques reais nesse cenário tão complexo.
Mutirões da Leste 1 virou uma pequena colcha de relatos, tecida a partir de histórias individuais, que se repetiam em inúmeras falas.
O roteiro de Mutirões da Leste 1 se resolveu no processo de montagem, como consequência direta da necessidade de encerramento do trabalho. Por isso tomei uma decisão difícil: a de mencionar todos os mutirões e apresentar todas as pessoas entrevistadas, sem exceção, numa montagem em ordem mais ou menos cronológica, abrindo mão das camadas de contextualização mais amplas. No fim, Mutirões da Leste 1 virou uma pequena colcha de relatos, tecida a partir de histórias individuais, que se repetiam em inúmeras falas. Expectadores não conseguem ter clareza de tudo o que aconteceu historicamente, nem compreender o funcionamento geral do movimento, mas conecta cada um dos depoimentos num conjunto maior, coletivo e absolutamente politizado. Uma das coisas mais bonitas foi assistir o documentário junto o Movimento. Isso aconteceu apenas duas vezes por conta da pandemia. E foi emocionante demais ouvir as reações das pessoas se vendo nas falas umas das outras.
GM: Com o decorrer do documentário conseguimos identificar alguns atores nesse processo, como a igreja e o estado. Quais você identifica como os principais atores que atuam na luta por moradia e como se altera seu envolvimento com o passar dos anos?
PC: O primeiro e mais importante é o povo, esse povo de luta. O MST Leste 1 tem uma característica muito importante que é a formação de base. Isso significa que são as pessoas que compõem o movimento, que contam de fato sua história. E é de lá que surgem as lideranças, que não são únicas e insubstituíveis, mas formadas junto com o Movimento. E é um desafio gigantesco fazer essa formação de base no contexto atual. Quando o movimento começou, e isso é fala da Rita de Angelus (fundadora da Leste 1), a palavra de ordem era solidariedade. Esse era o senso comum na época. Aos poucos essa ideia foi sendo esmagada, desconstruída e entrou em seu lugar um individualismo brutal, cada vez mais internalizado em nossa cultura, através do crescente ideal neoliberal. Mas essa ideia de solidariedade coletiva vinha da Igreja Católica progressista que teve um papel fundamental de estruturação da organização popular nas décadas de 80 e 90, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Ela assume esse papel de construir espaços coletivos comunitários politizados – que às vezes aconteciam na sala de uma casa da vizinhança – e geograficamente espalhados pela cidade, partindo da premissa da criação de autonomia de cidadãos a partir de um viés político intuitivo e direto: o pensamento comunitário e a mística da solidariedade cristã real e ativa. Nas CEBs, diálogos que começavam a partir da escuta dos problemas trazidos pela população em suas reuniões – falta de moradia, falta de luz, falta de comida, falta de transporte – partiam para a percepção de que eram problemas comuns a todes. Foi muito rápida a aderência de inúmeras pessoas a essas reuniões, que começaram com dezenas de pessoas para chegar, em poucos meses, a milhares em apenas um final de semana (tinham que fazer duas, três reuniões seguidas nas grandes igrejas do bairro).
O MST Leste 1 tem uma característica muito importante que é a formação de base. Isso significa que são as pessoas que compõem o movimento, que contam de fato sua história.
Havia também acadêmicos do direito, da arquitetura e urbanismo, do serviço social que foram importantíssimos na estruturação de propostas ao poder público e de soluções técnicas para os problemas que eram levantados. A assessoria jurídica, por exemplo, teve uma atuação incrível anterior à da arquitetura. Eles articularam a escrita da Lei do Inquilinato (que sequer existia na década de 80), a das tarifas reduzidas de luz e água, e fizeram a primeira proposta de Lei de Iniciativa Popular juntando mais de 1 milhão de assinaturas, numa época que não havia internet, só para exemplificar! Eles realizaram muita coisa. Outra figura importante, que inspirou os movimentos de moradia, foi a FUCVAM (Federacion Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua). Por fim, há o Estado, como figura pública, que é importante como personagem, mas “um” personagem burguês, que precisa ser subvertido. Uma das pautas do MST Leste 1, juntamente com a UMM, UNMP e CMP é essa de transformar o estado para que volte a atender – e ser guiado – pelos interesses e necessidades populares.
GM: Sabemos que muito se romantiza sobre a relação dos arquitetos em assessorias técnicas, projetos participativos e mutirões, porém, em seu documentário, você opta por focar na luta do movimento, trazendo, ao mesmo tempo, um pouco da relação entre os mutirantes com a obra e com suas casas. Qual a relação que você entende entre a prática da arquitetura e os movimentos sociais, dentro desse contexto?
PC: Eu vejo essa romantização como um percurso ainda imaturo de quem não se debruçou com responsabilidade no trabalho dentro de uma assessoria técnica. Coisa de estudante – e aqui abro dois parênteses: o primeiro, que falo com todo carinho e respeito a esse “estado de estudante” que volta e meia nos encontramos nessas trajetórias da vida; e segundo, com a saudade desse lugar de deslumbramento e inocência, cuja potência criativa está em seu ápice! E esse é um dos motores da nossa profissão, afinal, não? Esse, e a esperança, como diz sempre para ses alunes o professor João Marcos de Almeida Lopes.
Agora, quando adentramos nessa práxis e nos deparamos com a realidade desse nosso país de algum deus colonial, é que a romantização precisa cessar imediatamente para dar lugar à responsabilidade profunda, e diria afetiva, de atuação. O urbanismo nos mostra com clareza as atrocidades sociais a que estamos submetides. É preciso coragem e muito fôlego coletivo para olhar e propor intervenções. Um dos muitos aprendizados importantes que tirei das minhas rápidas experiências trabalhando na Usina CTAH foi o olhar histórico-crítico e inteiramente humanizado des trabalhadores sociais. Zero ofensas aes arquitetes, mas o projeto toma muito tempo e energia (muito!, sabemos). Eles têm um olhar que extravasa a questão técnica, pragmática, e que olha o agora, o contexto humano de cada família e como as pessoas se apropriam de todo o processo. Sem isso, nada faz sentido, e quiçá a arquitetura pode mais atrapalhar que, de fato, construir...
GM: Hoje a cidade de São Paulo enfrenta um dos piores cenários para habitação de interesse social dos últimos anos, sem nenhum programa habitacional que abranja os grupos mais necessitados. Isso, somado à pandemia que escancarou a necessidade por habitação digna para todos e à crise econômica que nos acompanha. O que você acha que a história da Leste 1 e o documentário podem nos ensinar, tendo em vista nossas perspectivas atuais?
Paula Constante: Estamos devastades. Mas historicamente já estivemos devastades também, e seguimos. Precisamos nos compreender como seres formados de água, DNA e história fundamentalmente. Então, o mantra é: cuidemo-nos tanto quanto possível, e o façamos da maneira mais coletiva que pudermos nesse contexto pandemoníaco (...). E aí, voltemos ao front de luta. Que não seja para avançar (ainda!), mas para segurarmos as conquistas que já alcançamos. De mãos dadas, e absorvendo, estudando, re-conhecendo a história des que já lutaram, a história des que seguem lutando. E, claro, essa história, contada do lado de cá, daqueles que “não venceram” nos moldes burgueses, mas muito mais que isso, que viveram e construíram a luta popular e suas emocionantes e surpreendentes conquistas. Com todas as complexidades. Povos indígenas que estão lutando bravamente contra essa inominável perda de seus parcos direitos nos ensinam sobre uma de suas figuras fundamentais nas aldeias: contadores de histórias, que se encarregam, através delas, da criação do senso de pertencimento (coletivo e local), do senso crítico e do elo espiritual com a natureza. Então, a história da Leste 1 precisa circular e estar entre todes nós. Essa compreensão histórica nos permite ter um pensamento mais crítico na hora de atuar profissionalmente, e isso é o que faz com que a romantização se transforme numa atuação mais coerente e, assim, potente.
Assista ao filme Mutirões da Leste 1 e os outros documentários no site da FERA FILMES.